James Rosenquist, 1960




com o sol e a lua bailando em Leão, aos 6 anos vivi plenamente, depois me confundi, conheci o fantástico, tornei-me impura, enlouqueci, enxerguei os meus olhos verdes, fui fazer a vida, pisei em Vênus, perdi o chão, andei pelas estrelas, me virei em contos, e descobri a própria sorte. Hoje, só engulo o que for orgânico e só penso em me exibir.


ouvidos

pés e poesia

segunda-feira, novembro 23

relando

Aula de biodança. Seriamente indicada para quem não anda muito feliz. Uns movimentos de mãos e braços no ar, que não dizem nada, e que fazem você se sentir em pleno festival de woodstock, mas sem a presença dos hippies propriamente ditos. Uma sala com quinze pessoas. A professora de cabelos crespos, soltos e altos. Quatorze alunos. Um japonês. A loira. E os doze que sobraram.

_ Meus queridos! Cada pessoa escolhe um par!

Momento arriscado, pois cada um ali poderia escolher um par diferente, e não se conseguiria, dessa maneira, formar os pares necessários. Mas todos olham em volta, daquele jeito sem jeito. Procurando algo que os agrade em alguém. Decisão complicada para ser tomada em menos de um minuto. Sorriem desconcertados. Querendo escolher, e esperando serem escolhidos. Naqueles seus andares em círculos, algumas topadas de leve abreviam a difícil missão. Mulheres acabam optando por mulheres, e homens preferem mulheres. O japonês quis a loira. Sequer a deixou responder se também o queria. Encontrou-a parada olhando os outros em movimento, e deu o bote! Ela já imaginava que isso poderia acontecer, e sentiu por não ter impedido.

_ Peguem nas mãos dos seus pares, e olhem no fundo dos seus olhos!

A luz é verde. Querendo trazer ao ambiente um ar de calmaria. Tranqüilidade ao som da música new age. Para a mulher de cabelos armados, isso é excelente para o equilíbrio das aulas. Para os alunos, é só mais uma ajuda para diminuir o acanhamento. Para a loira, foi fundamental no momento em que teve que encarar o homem que estava a sua frente, e que a observava sem piscar. Míope, ela mal via os seus olhos riscados, e muito menos enxergava o fundo tão falado. Também não conseguia atingir qualquer relaxamento. Os seus ombros estavam duros. As pernas quase não saíam do lugar. Ele a olhava, vidrado.

_ Sintam as mãos! Acariciem os dedos, as palmas!

Nem precisava mandar. Ele já estava fazendo isso há muito tempo. Pelo menos para a loira, pareciam séculos. As mãos úmidas e quentes do japonês. Nenhum calo. Quase meladas. Só ele acariciava. Ela não se mexia. Deu apenas uma “esfregadinha” no dorso de uma de suas mãos, para não parecer tão estranha. Uma passada de dedos, somente. Com uma certa pressão, para não pensar ser carinho, e sequer causar qualquer sensação de prazer.

_ Continuem assim! Ouçam a música! Acompanhem o ritmo suave com o corpo!

Nem um passo. O japonês a puxava, mas a loira não respondia. Tinha fechado os olhos, e fingia não ter ouvido o que a cabeluda tinha dito. Insistiu mais umas duas vezes, e ficou parado também. Estava bom para ele, de qualquer jeito.

_ As saboneteiras! Massageiem as saboneteiras dos seus pares! Com carinho! Levemente! Depois passem para os ombros!

Não podia ser. A saboneteira é um lugar muito íntimo... Mas as mãos frívolas já estavam lá. Ele avançava para o pescoço, sem pedir. Com a desculpa de ser um lugar que retém muita tensão. A loira continuava sem se mexer. A professora vibrava com aquilo que acreditava ser o rendimento da aula: um bando de gente constrangida, com os seus corpos enrijecidos, e a loira esperando a eternidade passar, se negando a tocar o japonês.

_Vejam como eu sinto a música! É assim que vocês têm que fazer! (falava e rodava pela sala de breu verde) Agora os braços! Toquem os braços com carinho!

E ele a tocava. Lentamente. Descia e subia os seus dedos e palmas das mãos pelos longos braços. Voltava para os ombros. Lembrava-se das saboneteiras. A loira, praticamente, já havia sucumbido à umidade daqueles toques. Não menos endurecida. Nem menos aflita.

_ Aproveitem que os seus pares estão de olhos fechados, e conheçam os seus rostos! Mas fechem os olhos também! Passem as suas mãos e dedos no rosto do par!

Só ele passava. De novo, ela fingiu. Parecia não entender o que a maluca dizia. Estava lá, com as pontas dos dedos dele em cima das suas pálpebras. Das suas sobrancelhas. Da sua testa. Com as mãos inteiras deslizando e cobrindo o seu rosto. Na boca. Brinca com os lábios grossos, abrindo-os e os fechando, provocando ruídos.

_ Dancem ao mesmo tempo!

Ele também já não se mexia. Agora estava nos lóbulos das orelhas. Antes disso tinha ido para o queixo, onde ficou apertando até que ficasse vermelho. Não resistiu e puxou a leve papada que ficava abaixo. Tortura. Limite da loira. Não suportava mais o calor daquelas mãos em seu corpo. Nem mesmo a voz fina daquela rodopiante mulher pirada de cabelos eletrizados. O bafo da sala já tinha dado por finda qualquer ridícula sensação de bem-estar que pudesse ter sentido logo que chegou naquele lugar. Insistiu. Afinal, todas aquelas pessoas não estariam ali à toa. Nem o japonês!

_ Muito bem! Agora eu quero que vocês dêem um longo abraço um no outro. Agradecendo o que sentiram!

Peito respirando com peito em apuros. Era a gota d’água. Tudo o que o japonês queria. Colocou os seus braços por baixo dos dela. Apesar de curtos, por pouco não davam uma volta no corpo magro Encaixou o seu pescoço e tombou a sua cabeça no ombro da loira. Ela nunca tinha sentido um abraço tão apertado. Porém sem dor. As mãos espalmadas nas suas costas terminavam os últimos contatos. Limita-se a abraçar somente os ombros do japonês.

_ Parabéns! (todos batem palmas)

A loira vai embora, com as mãos do japonês em sua lembrança.

         Constantin Brancusi, FRAN, 1907                                                             
 

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