James Rosenquist, 1960




com o sol e a lua bailando em Leão, aos 6 anos vivi plenamente, depois me confundi, conheci o fantástico, tornei-me impura, enlouqueci, enxerguei os meus olhos verdes, fui fazer a vida, pisei em Vênus, perdi o chão, andei pelas estrelas, me virei em contos, e descobri a própria sorte. Hoje, só engulo o que for orgânico e só penso em me exibir.


ouvidos

pés e poesia

quinta-feira, abril 1

Da janela.

Otto Dix                                                                 









 Ninguém dali dorme tranqüilo. A qualquer momento Santina pode se levantar da sua cama, entrar no quarto e agarrar os cabelos de qualquer um que esteja deitado. Toda noite a mesma apreensão... Não se sabia por que ela fazia isso. Não se procurava saber.

_ ô mãe, dá pra dar um jeito na Santina? Eu preciso dormir. Amanhã eu levanto cedo!

_ O que você quer que eu faça? Vou amarrá-la na cama?

_ Pôxa! Assim não dá! Assim não dá!

Santina ouvia tudo, pois não era surda, mas o seu olhar ficava distante de todos, em algum lugar perdido naquela mente de menina. Eram dez filhos. Dois morreram assim que acabaram de nascer: a Marion Jean  e o Jean Marion. A mãe mal teve tempo de sofrer, com tanta criança grudada em sua saia, e aquele marido português de ar grosseiro e insolente, querendo tudo na mão. Trabalhador, não se pode negar. Toda madrugada ficava rondando as linhas de trem, evitando a invasão de malfeitores na ferrovia ativa. Já se ouviu dizer que rasgou a boca de um cão policial quando esse tentou mordê-lo durante um dos seus turnos. Abriu tanto a boca do maldito, até que o deixou sem vida, sangrando em cima de suas botas. Santina nunca puxou os cabelos do pai no meio da noite. Não se sabe se ela conhecia a estória do cachorro...

As irmãs tentavam se arrumar escondidas. Cabelos com permanentes, lábios pintados. Só entravam em casa depois de colocar o lenço na cabeça e esfregarem as bocas. Temiam o reio. Santina não tinha disso, vivia descabelada, gorda e amassada, carregando, sem jeito, o gato que tentava escapar dos seus braços. A janela era onde ficava olhando para onde ninguém via, esperando não se sabe o quê.

Não se conhecia a sua alegria, ou os seus quereres. Não se sabia dela. A manga, e o seu cheiro no pomar, era o mundo de Santina.

_ Olha, Dona Mariette, a sua filha precisa de reza! Só isso pode ajudar essa menina. Deixa-me levá-la no centro espírita do meu vizinho. Lá eles vão dar passe, e ela toma uma água...

_ Sei, não. Esse negócio de passe... Isso é coisa de macumbeiro!

_ Que macumbeiro, que nada comadre! Tudo gente séria. Pessoas boas, de família.

_ Vamo tentá uma vez então. Uma vez só!

E lá se foi Santina, acompanhando a mulher que lhe prometera a cura. Não fez mal, mas também não adiantou. Os cabelos e os sonos dos irmãos ainda continuavam em risco.

_ Como vai Dona Mariette Posso entrar um pouco?

_ Claro, Aristófilo. O meu marido não está, mas daqui a pouquinho ele aparece.

_ Pois é Dona Mariette... As coisas não estão nada boas para mim. A minha mulher me largou, perdi o emprego por causa da tristeza que me abateu, e nunca mais vi os meus filhos que ela levou embora, sem dizer para onde foi.

_ Que coisa, meu compadre! O que é a vida... Toma esse chazinho aqui, que você já vai se animar!

_ Não adianta, não. Não tem mais jeito mesmo. Daqui a pouco vou ter que pedir esmola na rua. Até a minha família me virou as costas. Eu não passo de um lazarento!

Santina, que só saía da janela à noite, quando se recolhia para dormir, dirige-se para a cozinha e olha para a cara do infeliz, que derruba as suas lágrimas na toalha de mesa surrada.

_Sabe onde tá o teu problema? Ta lá no teu fogão! Vai pra casa e olha o teu fogão! Pare de se lamentar e vai pra casa! Na tua cozinha!

_Ô Santina, fica quieta! Não vê que o homem tá sofrendo, perdeu a mulher, que fugiu. Fica quieta, menina! O senhor não repara não, que ela é assim meio... Não bate bem da cabeça mesmo! (a mãe se exalta olhando feio para filha de olhos vazios)

_Não, não se preocupe (diz o homem consternado, tentando disfarçar o seu aborrecimento com o que ouviu). Eu vou embora. Já tá tarde da noite comadre. Diz para o compadre que eu estive aqui, tá bom.

_Eu direi. Eu direi. Vá com Deus, compadre!

Santina já tinha se afastado dos dois, como se não tivesse acontecido nada, voltando a continuar o seu recolhimento. No dia seguinte, o compadre voltou. Dona Mariette, sempre gentil, abriu a porta, com aquele olhar solidário para a dor alheia.

_Dona Mariette, a senhora não sabe o que tinha no meu fogão!

_Que fogão?

_O fogão! O fogão da minha casa. Na minha cozinha!

_Ah, sim! Não vai dizer que você acreditou no que a Santina lhe disse ontem. Aquela menina não sabe o que fala! O senhor sabe que ela até já...

_Não, comadre (gritou-lhe de sobressalto, antes que ela terminasse de falar). Era verdade! É trabalho feito. Tava cheio dele dentro do forno do meu fogão.

_ Nossa Senhora de Salete!

A família desconfiou. Como poderia uma coisa dessas... As sessões espíritas foram suspensas. Só pode ter sido culpa daquela mulher, que insistiu em levar a Santina tomar aquela água...

De agora em diante Santina não sai mais de casa, decidiu o português truculento. Para ela tanto fez, pois se satisfazia com a janela. Os irmãos não estavam muito preocupados com tudo aquilo, a não ser com as entradas furtivas de Santina nos quartos de madrugada.

O tempo passou. As irmãs alcançaram a idade de se casarem, e Santina completou 17 anos. A irmã mais velha levou o noivo para jantar em casa, e descansava, sentada ao lado dele na poltrona da saleta. Fazia tempo que não se viam, depois da temporada que ele passou viajando a serviço. Santina quase não falava mais. Continuava puxando cabelos, e agarrando o gato. Aproximou-se do casal e mirou o homem, afirmando com o dedo em riste:

_Você abandonou a minha filha! Enganou a pobre! Mentiu para família toda! Você já era noivo! Safado!

_ O que é isso, Santina? Ô, mãe! Vem aqui dar um jeito na Santina!


Dona Mariette surge da cozinha e arrasta Santina para o quarto, que sai como se não tivesse falado nada daquilo. Um ano mais se passa, o jovem casal convola núpcias, e Santina é internada em um manicômio. A seu contragosto, mas não do resto, que perdeu a sua paciência. Nos bolsos dos poucos que vão visitá-la, esconde bilhetes pedindo para que a tirem dali. Ninguém a atende.

O tempo não pára, e o noivo admite à irmã de Santina que teve uma mulher enquanto viajava. Que aquilo que Santina havia dito no passado era verdade. Ele só não imaginava como ela sabia de tudo o que aconteceu, mas tinha certeza que a sua voz naquele dia era igual a da mãe morta da namorada esquecida, que havia falecido naquela mesma época. A irmã de Santina até acredita, mas ri do que ouve. Afinal de contas, já se passaram mais de trinta anos.

Santina faz 70 anos. No jardim florido, assopra as velas do bolo levado pela única irmã que ainda a visita no sanatório.

_ Parabéns, Santina! Quantos anos você está fazendo?

_Dezoito.

O seu olhar continuava ausente, debruçado naquela janela.

de ontem

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