James Rosenquist, 1960




com o sol e a lua bailando em Leão, aos 6 anos vivi plenamente, depois me confundi, conheci o fantástico, tornei-me impura, enlouqueci, enxerguei os meus olhos verdes, fui fazer a vida, pisei em Vênus, perdi o chão, andei pelas estrelas, me virei em contos, e descobri a própria sorte. Hoje, só engulo o que for orgânico e só penso em me exibir.


ouvidos

pés e poesia

sexta-feira, abril 16

ESTÔMAGO

 

Monique é daquelas mulheres que, sem disfarçar o pejo, embaraça-se com a trivialidade que ocupa o seu tempo. Acorda cedo, tem somente uma hora para o almoço, e sai do emprego às 17hs. Conhece todos os gêneros dos estropiados. Pernetas, manetas, caolhos, maníacos, e os de corações defeituosos. Entram e saem de sua sala espumando as suas babas grossas, ou eternamente gratos. Há compaixão nos olhos de Monique, e uma interminável esperança por um lance do seu olhar. Jean Pierre é um rapaz de sorte. Um verdadeiro desvirtuado, que ganhou a chance de ser olhado e escutado por Monique. Um longo momento de aguardo. Tudo em volta que compõem o ambiente frio e impessoal de Monique não é capaz de prender a atenção nem mesmo daquela mente desfigurada e alheia, que muitas vezes já se envolveu por horas na simples imagem de algo qualquer. E que agora mergulha o mais fundo nas sombras escuras que rodeiam aqueles olhos, tantas vezes imaginados. Uma delícia imensa. Sentida e narrável. Não percebida por Monique, que aguarda a primeira palavra para começar a escrever no extenso formulário.


_ Nome?


Silêncio. A salivação excessiva obriga Jean Pierre a secar os cantos da boca com a ponta da língua, e depois com as pontas dos dedos. Como quem não esconde a fome de comer o impossível. O vazio do buraco do estômago. Ocupado pelo som da batida intermitente da caneta na mesa, segurada pelas mãos dela, que não tremem, não se abalam, não sentem pressa. Ele não trabalha mais. Mas ainda tem suas vontades, e é dono de suas escolhas. E do equilíbrio dos insanos para aguardar mais nove meses de espera em uma fila, se for preciso. Só para olhar a fundura daqueles olhos, e poder dizer o seu nome.


_ Jean Pierre.


Há quem diga que ele é louco. Mas há os que dizem que ele não enlouqueceu. Os loucos não respondem perguntas. Não sabem esperar. Têm os cabelos desgrenhados, e as suas roupas são fétidas. Matraqueiam e se fazem de surdos. Os loucos não olham nos olhos. Nem mesmo nos de Monique.


Jean Pierre se diz um conhecedor de verdadeiros deleites. Únicos. Crus. Sonoros. Palpáveis. Quentes e frios. Que terminam por completar o espaço do buraco do seu estômago.


_ Eu tive vontade de comê-la, e comi.


_ E o que você sentiu?


_ Prazer.


Monique preenche o formulário. Jean Pierre preenche todos os requisitos, e se despede dos olhos. 17hs. Monique assinala no papel a última informação: “sente satisfação ao comer baratas”. Arruma as coisas na mesa, e pendura a sua bolsa nos ombros. Trivialmente e sem prazer, como faz todos os dias.



                                                  Marcel Broodthaers - Grand Casserole de Moules, 1966, Bélgica



de ontem

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