James Rosenquist, 1960




com o sol e a lua bailando em Leão, aos 6 anos vivi plenamente, depois me confundi, conheci o fantástico, tornei-me impura, enlouqueci, enxerguei os meus olhos verdes, fui fazer a vida, pisei em Vênus, perdi o chão, andei pelas estrelas, me virei em contos, e descobri a própria sorte. Hoje, só engulo o que for orgânico e só penso em me exibir.


ouvidos

pés e poesia

segunda-feira, novembro 23

kitchenette




   richard hamilton



Todas as vezes que retira o molho de chaves do bolso de suas calças para abrir a porta da kitchenette recém-alugada, ele sente aquele frio na barriga que denuncia a sua vontade de mais uma vez surpreender Regina se trocando na sala. A sala, que é o seu quarto, que é também onde fica a geladeira e a cama de solteiro, onde ele se senta para ver a TV que está em cima do guarda-roupa, que fica ao lado da mesa do computador, na frente da janela, junto à cama que é o primeiro móvel visto por quem entra pela única porta de entrada. Mas naquele dia, Regina não estava se trocando. Nem ao menos as suas roupas estavam em cima da cama. O barulho no banheiro... Ele sempre a imagina tomando banho. E esse é o segundo motivo que o conforma de ter ali aquela intrusa de 46 anos. O primeiro é acreditar que um dia ele a possa ver nua sem precisar da sua imaginação. Ela não sabe. E é nisso que ele pensa quando se lembra que na kitchenette só tem lugar para as coisas dele, e é só para ele. Ele não tem compromissos com ninguém. Ela não percebe. Ele a deseja e a quer fora dali. Ele não é o seu irmão mais novo, como ela prefere vê-lo. É um descendente de paquistaneses. Homem de pele morena escura, com nariz avantajado, fundas olheiras, e olhos esverdeados. O seu corpo magro mais denuncia fragilidade do que agilidade. Não é possível saber se sairia bem em um confronto com outro homem. E aquele é o seu primeiro apartamento, depois de 30 anos morando com os pais em um bairro de classe média. Ela apareceu no dia seguinte à sua primeira noite na kitchenette. Pediu para ficar. Tinha saído de casa, após ter flagrado o seu marido com a secretária de 23 anos em sua cama. Largou tudo, marido, filho, e bens. O apartamento do casal fica de frente para a kitchenette, e talvez por isso ela tenha pensado, primeiro, em ir para lá. Tão próximo. O paquistanês não lhe disse não, embora desejasse. Amiga da família. Cresceu com a sua irmã. Ela passou a ficar na kitchenette, mas prometeu que seriam só alguns dias. Até acertar a sua vida de mulher separada, e chifrada. Ele acreditou. Havia um colchonete por ali, para o caso de alguma visita, que não era o caso. As malas poderiam ficar embaixo da cama, ele tiraria os seus chinelos de lá, para desocupar o espaço. Ela quis tomar banho. Ele indica o chuveiro, pedindo a ela que se desvie da quina do fogão que ocupa metade da porta do banheiro e que preenche o espaço cedido pela geladeira no quadrado que algum arquiteto chamou de cozinha. Vinte e cinco minutos depois, ela está de volta, cabelos molhados, outras roupas. Diz que está com fome. Toma um café e come bolachas murchas. Não há nada melhor por ali, e ele não está preocupado com isso. A sua boca na xícara, a fumaça do café requentado, o barulho da sua mastigação. Nada disso fazia parte do que estava planejado para os seus primeiros dias no seu primeiro apartamento. Aliás, não havia nada planejado. Eram onze horas da noite. As putas da rua do prédio já devem estar no segundo cliente. Ele aproxima-se do beiral da janela para observar. Isso estava planejado. Foi uma das razões que o levou a alugar aquela kitchenette. Prostitutas. Na noite passada, já havia catalogado em sua mente cada uma delas, só não sabia ainda se todas estavam lá. Reconheceria os seus cabelos, os seus rebolados, e principalmente os seus seios, olhados de cima, do quarto andar do edifício. Lugar pouco privilegiado para tal intento, mas suficiente para suprir as necessidades de suas fantasias noturnas. Ela quer dormir. Diz que teve um dia difícil. Pergunta onde pode se deitar. Ele mostra a sua cama de solteiro. Ele fica com o colchonete. Arrepende-se. Volta para a janela, e imagina o grande dia em que trará uma mulher para o seu apartamento. Ela pede para apagar a lâmpada. Ele apaga, e se arrepende de novo. Está sem sono. Não costuma dormir antes da 2h. O burburinho lá embaixo aumenta. Ainda bem que não precisa de luz para poder enxergar. O cafetão chega e começa a orientar as suas mulheres na rua. Elas reclamam do que ouvem, e gesticulam agressivamente com os braços. Ele não dá ouvido, e vai embora. Ela pede para fechar um pouco a janela, pois está com frio. Ele o faz. Arrepende-se. Um carro importado estaciona ao lado da puta com cabelos oxigenados e minissaia pink. O vidro escuro é aberto, e ela se aproxima. Depois de dois minutos de conversa, ela entra no veículo, e eles saem. Em seguida, o cafetão aparece na calçada e pergunta algo para aquelas que ficaram, elas lhe respondem, e ele sorri como tivesse gostado do que ouviu. Talvez acredite que a sua prostituta oxigenada será a que trará mais dinheiro naquela noite. Olha para as outras, faz sinal para elas se mexerem, e se aproximarem mais da rua. Vitrine do sexo. Ela se movimenta na cama. Ele se lembra que não colocou lençóis limpos para que ela usasse. Não se arrepende. Queria esperar a puta oxigenada voltar, mas é difícil olhar para baixo com somente uma fresta da janela aberta. Resolve, então, também ir dormir. Ergue os braços, e pega o colchonete que está ao lado da TV, em cima do guarda-roupa. Um colchonete velho, com listras azuis e brancas, e da espessura de um cobertor. Desconfortável. Arrepende-se mais. Estende-o no chão, e se lembra que não tem outras roupas de cama, edredons ou travesseiro para que ele possa usar. Deita-se, e fica olhando para o lado de fora da janela, de baixo para cima.
                                                                                                                        







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