dE jOUeT

James Rosenquist, 1960




com o sol e a lua bailando em Leão, aos 6 anos vivi plenamente, depois me confundi, conheci o fantástico, tornei-me impura, enlouqueci, enxerguei os meus olhos verdes, fui fazer a vida, pisei em Vênus, perdi o chão, andei pelas estrelas, me virei em contos, e descobri a própria sorte. Hoje, só engulo o que for orgânico e só penso em me exibir.


ouvidos

pés e poesia

sexta-feira, abril 16

ESTÔMAGO

 

Monique é daquelas mulheres que, sem disfarçar o pejo, embaraça-se com a trivialidade que ocupa o seu tempo. Acorda cedo, tem somente uma hora para o almoço, e sai do emprego às 17hs. Conhece todos os gêneros dos estropiados. Pernetas, manetas, caolhos, maníacos, e os de corações defeituosos. Entram e saem de sua sala espumando as suas babas grossas, ou eternamente gratos. Há compaixão nos olhos de Monique, e uma interminável esperança por um lance do seu olhar. Jean Pierre é um rapaz de sorte. Um verdadeiro desvirtuado, que ganhou a chance de ser olhado e escutado por Monique. Um longo momento de aguardo. Tudo em volta que compõem o ambiente frio e impessoal de Monique não é capaz de prender a atenção nem mesmo daquela mente desfigurada e alheia, que muitas vezes já se envolveu por horas na simples imagem de algo qualquer. E que agora mergulha o mais fundo nas sombras escuras que rodeiam aqueles olhos, tantas vezes imaginados. Uma delícia imensa. Sentida e narrável. Não percebida por Monique, que aguarda a primeira palavra para começar a escrever no extenso formulário.


_ Nome?


Silêncio. A salivação excessiva obriga Jean Pierre a secar os cantos da boca com a ponta da língua, e depois com as pontas dos dedos. Como quem não esconde a fome de comer o impossível. O vazio do buraco do estômago. Ocupado pelo som da batida intermitente da caneta na mesa, segurada pelas mãos dela, que não tremem, não se abalam, não sentem pressa. Ele não trabalha mais. Mas ainda tem suas vontades, e é dono de suas escolhas. E do equilíbrio dos insanos para aguardar mais nove meses de espera em uma fila, se for preciso. Só para olhar a fundura daqueles olhos, e poder dizer o seu nome.


_ Jean Pierre.


Há quem diga que ele é louco. Mas há os que dizem que ele não enlouqueceu. Os loucos não respondem perguntas. Não sabem esperar. Têm os cabelos desgrenhados, e as suas roupas são fétidas. Matraqueiam e se fazem de surdos. Os loucos não olham nos olhos. Nem mesmo nos de Monique.


Jean Pierre se diz um conhecedor de verdadeiros deleites. Únicos. Crus. Sonoros. Palpáveis. Quentes e frios. Que terminam por completar o espaço do buraco do seu estômago.


_ Eu tive vontade de comê-la, e comi.


_ E o que você sentiu?


_ Prazer.


Monique preenche o formulário. Jean Pierre preenche todos os requisitos, e se despede dos olhos. 17hs. Monique assinala no papel a última informação: “sente satisfação ao comer baratas”. Arruma as coisas na mesa, e pendura a sua bolsa nos ombros. Trivialmente e sem prazer, como faz todos os dias.



                                                  Marcel Broodthaers - Grand Casserole de Moules, 1966, Bélgica



quinta-feira, abril 1

Da janela.

Otto Dix                                                                 









 Ninguém dali dorme tranqüilo. A qualquer momento Santina pode se levantar da sua cama, entrar no quarto e agarrar os cabelos de qualquer um que esteja deitado. Toda noite a mesma apreensão... Não se sabia por que ela fazia isso. Não se procurava saber.

_ ô mãe, dá pra dar um jeito na Santina? Eu preciso dormir. Amanhã eu levanto cedo!

_ O que você quer que eu faça? Vou amarrá-la na cama?

_ Pôxa! Assim não dá! Assim não dá!

Santina ouvia tudo, pois não era surda, mas o seu olhar ficava distante de todos, em algum lugar perdido naquela mente de menina. Eram dez filhos. Dois morreram assim que acabaram de nascer: a Marion Jean  e o Jean Marion. A mãe mal teve tempo de sofrer, com tanta criança grudada em sua saia, e aquele marido português de ar grosseiro e insolente, querendo tudo na mão. Trabalhador, não se pode negar. Toda madrugada ficava rondando as linhas de trem, evitando a invasão de malfeitores na ferrovia ativa. Já se ouviu dizer que rasgou a boca de um cão policial quando esse tentou mordê-lo durante um dos seus turnos. Abriu tanto a boca do maldito, até que o deixou sem vida, sangrando em cima de suas botas. Santina nunca puxou os cabelos do pai no meio da noite. Não se sabe se ela conhecia a estória do cachorro...

As irmãs tentavam se arrumar escondidas. Cabelos com permanentes, lábios pintados. Só entravam em casa depois de colocar o lenço na cabeça e esfregarem as bocas. Temiam o reio. Santina não tinha disso, vivia descabelada, gorda e amassada, carregando, sem jeito, o gato que tentava escapar dos seus braços. A janela era onde ficava olhando para onde ninguém via, esperando não se sabe o quê.

Não se conhecia a sua alegria, ou os seus quereres. Não se sabia dela. A manga, e o seu cheiro no pomar, era o mundo de Santina.

_ Olha, Dona Mariette, a sua filha precisa de reza! Só isso pode ajudar essa menina. Deixa-me levá-la no centro espírita do meu vizinho. Lá eles vão dar passe, e ela toma uma água...

_ Sei, não. Esse negócio de passe... Isso é coisa de macumbeiro!

_ Que macumbeiro, que nada comadre! Tudo gente séria. Pessoas boas, de família.

_ Vamo tentá uma vez então. Uma vez só!

E lá se foi Santina, acompanhando a mulher que lhe prometera a cura. Não fez mal, mas também não adiantou. Os cabelos e os sonos dos irmãos ainda continuavam em risco.

_ Como vai Dona Mariette Posso entrar um pouco?

_ Claro, Aristófilo. O meu marido não está, mas daqui a pouquinho ele aparece.

_ Pois é Dona Mariette... As coisas não estão nada boas para mim. A minha mulher me largou, perdi o emprego por causa da tristeza que me abateu, e nunca mais vi os meus filhos que ela levou embora, sem dizer para onde foi.

_ Que coisa, meu compadre! O que é a vida... Toma esse chazinho aqui, que você já vai se animar!

_ Não adianta, não. Não tem mais jeito mesmo. Daqui a pouco vou ter que pedir esmola na rua. Até a minha família me virou as costas. Eu não passo de um lazarento!

Santina, que só saía da janela à noite, quando se recolhia para dormir, dirige-se para a cozinha e olha para a cara do infeliz, que derruba as suas lágrimas na toalha de mesa surrada.

_Sabe onde tá o teu problema? Ta lá no teu fogão! Vai pra casa e olha o teu fogão! Pare de se lamentar e vai pra casa! Na tua cozinha!

_Ô Santina, fica quieta! Não vê que o homem tá sofrendo, perdeu a mulher, que fugiu. Fica quieta, menina! O senhor não repara não, que ela é assim meio... Não bate bem da cabeça mesmo! (a mãe se exalta olhando feio para filha de olhos vazios)

_Não, não se preocupe (diz o homem consternado, tentando disfarçar o seu aborrecimento com o que ouviu). Eu vou embora. Já tá tarde da noite comadre. Diz para o compadre que eu estive aqui, tá bom.

_Eu direi. Eu direi. Vá com Deus, compadre!

Santina já tinha se afastado dos dois, como se não tivesse acontecido nada, voltando a continuar o seu recolhimento. No dia seguinte, o compadre voltou. Dona Mariette, sempre gentil, abriu a porta, com aquele olhar solidário para a dor alheia.

_Dona Mariette, a senhora não sabe o que tinha no meu fogão!

_Que fogão?

_O fogão! O fogão da minha casa. Na minha cozinha!

_Ah, sim! Não vai dizer que você acreditou no que a Santina lhe disse ontem. Aquela menina não sabe o que fala! O senhor sabe que ela até já...

_Não, comadre (gritou-lhe de sobressalto, antes que ela terminasse de falar). Era verdade! É trabalho feito. Tava cheio dele dentro do forno do meu fogão.

_ Nossa Senhora de Salete!

A família desconfiou. Como poderia uma coisa dessas... As sessões espíritas foram suspensas. Só pode ter sido culpa daquela mulher, que insistiu em levar a Santina tomar aquela água...

De agora em diante Santina não sai mais de casa, decidiu o português truculento. Para ela tanto fez, pois se satisfazia com a janela. Os irmãos não estavam muito preocupados com tudo aquilo, a não ser com as entradas furtivas de Santina nos quartos de madrugada.

O tempo passou. As irmãs alcançaram a idade de se casarem, e Santina completou 17 anos. A irmã mais velha levou o noivo para jantar em casa, e descansava, sentada ao lado dele na poltrona da saleta. Fazia tempo que não se viam, depois da temporada que ele passou viajando a serviço. Santina quase não falava mais. Continuava puxando cabelos, e agarrando o gato. Aproximou-se do casal e mirou o homem, afirmando com o dedo em riste:

_Você abandonou a minha filha! Enganou a pobre! Mentiu para família toda! Você já era noivo! Safado!

_ O que é isso, Santina? Ô, mãe! Vem aqui dar um jeito na Santina!


Dona Mariette surge da cozinha e arrasta Santina para o quarto, que sai como se não tivesse falado nada daquilo. Um ano mais se passa, o jovem casal convola núpcias, e Santina é internada em um manicômio. A seu contragosto, mas não do resto, que perdeu a sua paciência. Nos bolsos dos poucos que vão visitá-la, esconde bilhetes pedindo para que a tirem dali. Ninguém a atende.

O tempo não pára, e o noivo admite à irmã de Santina que teve uma mulher enquanto viajava. Que aquilo que Santina havia dito no passado era verdade. Ele só não imaginava como ela sabia de tudo o que aconteceu, mas tinha certeza que a sua voz naquele dia era igual a da mãe morta da namorada esquecida, que havia falecido naquela mesma época. A irmã de Santina até acredita, mas ri do que ouve. Afinal de contas, já se passaram mais de trinta anos.

Santina faz 70 anos. No jardim florido, assopra as velas do bolo levado pela única irmã que ainda a visita no sanatório.

_ Parabéns, Santina! Quantos anos você está fazendo?

_Dezoito.

O seu olhar continuava ausente, debruçado naquela janela.

segunda-feira, novembro 23

papillon

                                                                                                        andy warhol              
                                                                                                                                     


Não meta o seu bedelho na asa da borboleta.
Nem da amarela, da preta de manchas azuis ou da branca.
Mesmo que ela esteja na ponta do seu nariz envesgando os seus olhos.
Senão ela morre e te cega.                                                       








                                                                                      
                                    

relando

Aula de biodança. Seriamente indicada para quem não anda muito feliz. Uns movimentos de mãos e braços no ar, que não dizem nada, e que fazem você se sentir em pleno festival de woodstock, mas sem a presença dos hippies propriamente ditos. Uma sala com quinze pessoas. A professora de cabelos crespos, soltos e altos. Quatorze alunos. Um japonês. A loira. E os doze que sobraram.

_ Meus queridos! Cada pessoa escolhe um par!

Momento arriscado, pois cada um ali poderia escolher um par diferente, e não se conseguiria, dessa maneira, formar os pares necessários. Mas todos olham em volta, daquele jeito sem jeito. Procurando algo que os agrade em alguém. Decisão complicada para ser tomada em menos de um minuto. Sorriem desconcertados. Querendo escolher, e esperando serem escolhidos. Naqueles seus andares em círculos, algumas topadas de leve abreviam a difícil missão. Mulheres acabam optando por mulheres, e homens preferem mulheres. O japonês quis a loira. Sequer a deixou responder se também o queria. Encontrou-a parada olhando os outros em movimento, e deu o bote! Ela já imaginava que isso poderia acontecer, e sentiu por não ter impedido.

_ Peguem nas mãos dos seus pares, e olhem no fundo dos seus olhos!

A luz é verde. Querendo trazer ao ambiente um ar de calmaria. Tranqüilidade ao som da música new age. Para a mulher de cabelos armados, isso é excelente para o equilíbrio das aulas. Para os alunos, é só mais uma ajuda para diminuir o acanhamento. Para a loira, foi fundamental no momento em que teve que encarar o homem que estava a sua frente, e que a observava sem piscar. Míope, ela mal via os seus olhos riscados, e muito menos enxergava o fundo tão falado. Também não conseguia atingir qualquer relaxamento. Os seus ombros estavam duros. As pernas quase não saíam do lugar. Ele a olhava, vidrado.

_ Sintam as mãos! Acariciem os dedos, as palmas!

Nem precisava mandar. Ele já estava fazendo isso há muito tempo. Pelo menos para a loira, pareciam séculos. As mãos úmidas e quentes do japonês. Nenhum calo. Quase meladas. Só ele acariciava. Ela não se mexia. Deu apenas uma “esfregadinha” no dorso de uma de suas mãos, para não parecer tão estranha. Uma passada de dedos, somente. Com uma certa pressão, para não pensar ser carinho, e sequer causar qualquer sensação de prazer.

_ Continuem assim! Ouçam a música! Acompanhem o ritmo suave com o corpo!

Nem um passo. O japonês a puxava, mas a loira não respondia. Tinha fechado os olhos, e fingia não ter ouvido o que a cabeluda tinha dito. Insistiu mais umas duas vezes, e ficou parado também. Estava bom para ele, de qualquer jeito.

_ As saboneteiras! Massageiem as saboneteiras dos seus pares! Com carinho! Levemente! Depois passem para os ombros!

Não podia ser. A saboneteira é um lugar muito íntimo... Mas as mãos frívolas já estavam lá. Ele avançava para o pescoço, sem pedir. Com a desculpa de ser um lugar que retém muita tensão. A loira continuava sem se mexer. A professora vibrava com aquilo que acreditava ser o rendimento da aula: um bando de gente constrangida, com os seus corpos enrijecidos, e a loira esperando a eternidade passar, se negando a tocar o japonês.

_Vejam como eu sinto a música! É assim que vocês têm que fazer! (falava e rodava pela sala de breu verde) Agora os braços! Toquem os braços com carinho!

E ele a tocava. Lentamente. Descia e subia os seus dedos e palmas das mãos pelos longos braços. Voltava para os ombros. Lembrava-se das saboneteiras. A loira, praticamente, já havia sucumbido à umidade daqueles toques. Não menos endurecida. Nem menos aflita.

_ Aproveitem que os seus pares estão de olhos fechados, e conheçam os seus rostos! Mas fechem os olhos também! Passem as suas mãos e dedos no rosto do par!

Só ele passava. De novo, ela fingiu. Parecia não entender o que a maluca dizia. Estava lá, com as pontas dos dedos dele em cima das suas pálpebras. Das suas sobrancelhas. Da sua testa. Com as mãos inteiras deslizando e cobrindo o seu rosto. Na boca. Brinca com os lábios grossos, abrindo-os e os fechando, provocando ruídos.

_ Dancem ao mesmo tempo!

Ele também já não se mexia. Agora estava nos lóbulos das orelhas. Antes disso tinha ido para o queixo, onde ficou apertando até que ficasse vermelho. Não resistiu e puxou a leve papada que ficava abaixo. Tortura. Limite da loira. Não suportava mais o calor daquelas mãos em seu corpo. Nem mesmo a voz fina daquela rodopiante mulher pirada de cabelos eletrizados. O bafo da sala já tinha dado por finda qualquer ridícula sensação de bem-estar que pudesse ter sentido logo que chegou naquele lugar. Insistiu. Afinal, todas aquelas pessoas não estariam ali à toa. Nem o japonês!

_ Muito bem! Agora eu quero que vocês dêem um longo abraço um no outro. Agradecendo o que sentiram!

Peito respirando com peito em apuros. Era a gota d’água. Tudo o que o japonês queria. Colocou os seus braços por baixo dos dela. Apesar de curtos, por pouco não davam uma volta no corpo magro Encaixou o seu pescoço e tombou a sua cabeça no ombro da loira. Ela nunca tinha sentido um abraço tão apertado. Porém sem dor. As mãos espalmadas nas suas costas terminavam os últimos contatos. Limita-se a abraçar somente os ombros do japonês.

_ Parabéns! (todos batem palmas)

A loira vai embora, com as mãos do japonês em sua lembrança.

         Constantin Brancusi, FRAN, 1907                                                             
 

Problema seu.

                                                                       
                                                                                                                                            George Segal, 1964
_ Você sabe a diferença entre pobrema e probrema? (pergunta Geni, pensativa).

_ Eu não sei, não (responde Josiane, se arrependendo, como que em um relance, de ter abandonado a escola que fazia à noite).

_ Pobrema é quando você tem um pobrema em casa, com o marido, filhos, contas pra pagar. Essas coisas... Probrema é quando você tem algum probrema na rua, no trabalho... Como quando a gente é assaltado, é demitido do emprego, ou a patroa descobre que você levou uma cebola dela embora. Entendeu? (orgulha-se Claudinéia, pela pequena aula que deu às novas amigas).

_ Ah! Então é isso! (Geni e Josiane não escondem a satisfação pelo aprendizado).

kitchenette




   richard hamilton



Todas as vezes que retira o molho de chaves do bolso de suas calças para abrir a porta da kitchenette recém-alugada, ele sente aquele frio na barriga que denuncia a sua vontade de mais uma vez surpreender Regina se trocando na sala. A sala, que é o seu quarto, que é também onde fica a geladeira e a cama de solteiro, onde ele se senta para ver a TV que está em cima do guarda-roupa, que fica ao lado da mesa do computador, na frente da janela, junto à cama que é o primeiro móvel visto por quem entra pela única porta de entrada. Mas naquele dia, Regina não estava se trocando. Nem ao menos as suas roupas estavam em cima da cama. O barulho no banheiro... Ele sempre a imagina tomando banho. E esse é o segundo motivo que o conforma de ter ali aquela intrusa de 46 anos. O primeiro é acreditar que um dia ele a possa ver nua sem precisar da sua imaginação. Ela não sabe. E é nisso que ele pensa quando se lembra que na kitchenette só tem lugar para as coisas dele, e é só para ele. Ele não tem compromissos com ninguém. Ela não percebe. Ele a deseja e a quer fora dali. Ele não é o seu irmão mais novo, como ela prefere vê-lo. É um descendente de paquistaneses. Homem de pele morena escura, com nariz avantajado, fundas olheiras, e olhos esverdeados. O seu corpo magro mais denuncia fragilidade do que agilidade. Não é possível saber se sairia bem em um confronto com outro homem. E aquele é o seu primeiro apartamento, depois de 30 anos morando com os pais em um bairro de classe média. Ela apareceu no dia seguinte à sua primeira noite na kitchenette. Pediu para ficar. Tinha saído de casa, após ter flagrado o seu marido com a secretária de 23 anos em sua cama. Largou tudo, marido, filho, e bens. O apartamento do casal fica de frente para a kitchenette, e talvez por isso ela tenha pensado, primeiro, em ir para lá. Tão próximo. O paquistanês não lhe disse não, embora desejasse. Amiga da família. Cresceu com a sua irmã. Ela passou a ficar na kitchenette, mas prometeu que seriam só alguns dias. Até acertar a sua vida de mulher separada, e chifrada. Ele acreditou. Havia um colchonete por ali, para o caso de alguma visita, que não era o caso. As malas poderiam ficar embaixo da cama, ele tiraria os seus chinelos de lá, para desocupar o espaço. Ela quis tomar banho. Ele indica o chuveiro, pedindo a ela que se desvie da quina do fogão que ocupa metade da porta do banheiro e que preenche o espaço cedido pela geladeira no quadrado que algum arquiteto chamou de cozinha. Vinte e cinco minutos depois, ela está de volta, cabelos molhados, outras roupas. Diz que está com fome. Toma um café e come bolachas murchas. Não há nada melhor por ali, e ele não está preocupado com isso. A sua boca na xícara, a fumaça do café requentado, o barulho da sua mastigação. Nada disso fazia parte do que estava planejado para os seus primeiros dias no seu primeiro apartamento. Aliás, não havia nada planejado. Eram onze horas da noite. As putas da rua do prédio já devem estar no segundo cliente. Ele aproxima-se do beiral da janela para observar. Isso estava planejado. Foi uma das razões que o levou a alugar aquela kitchenette. Prostitutas. Na noite passada, já havia catalogado em sua mente cada uma delas, só não sabia ainda se todas estavam lá. Reconheceria os seus cabelos, os seus rebolados, e principalmente os seus seios, olhados de cima, do quarto andar do edifício. Lugar pouco privilegiado para tal intento, mas suficiente para suprir as necessidades de suas fantasias noturnas. Ela quer dormir. Diz que teve um dia difícil. Pergunta onde pode se deitar. Ele mostra a sua cama de solteiro. Ele fica com o colchonete. Arrepende-se. Volta para a janela, e imagina o grande dia em que trará uma mulher para o seu apartamento. Ela pede para apagar a lâmpada. Ele apaga, e se arrepende de novo. Está sem sono. Não costuma dormir antes da 2h. O burburinho lá embaixo aumenta. Ainda bem que não precisa de luz para poder enxergar. O cafetão chega e começa a orientar as suas mulheres na rua. Elas reclamam do que ouvem, e gesticulam agressivamente com os braços. Ele não dá ouvido, e vai embora. Ela pede para fechar um pouco a janela, pois está com frio. Ele o faz. Arrepende-se. Um carro importado estaciona ao lado da puta com cabelos oxigenados e minissaia pink. O vidro escuro é aberto, e ela se aproxima. Depois de dois minutos de conversa, ela entra no veículo, e eles saem. Em seguida, o cafetão aparece na calçada e pergunta algo para aquelas que ficaram, elas lhe respondem, e ele sorri como tivesse gostado do que ouviu. Talvez acredite que a sua prostituta oxigenada será a que trará mais dinheiro naquela noite. Olha para as outras, faz sinal para elas se mexerem, e se aproximarem mais da rua. Vitrine do sexo. Ela se movimenta na cama. Ele se lembra que não colocou lençóis limpos para que ela usasse. Não se arrepende. Queria esperar a puta oxigenada voltar, mas é difícil olhar para baixo com somente uma fresta da janela aberta. Resolve, então, também ir dormir. Ergue os braços, e pega o colchonete que está ao lado da TV, em cima do guarda-roupa. Um colchonete velho, com listras azuis e brancas, e da espessura de um cobertor. Desconfortável. Arrepende-se mais. Estende-o no chão, e se lembra que não tem outras roupas de cama, edredons ou travesseiro para que ele possa usar. Deita-se, e fica olhando para o lado de fora da janela, de baixo para cima.
                                                                                                                        







O psiquiatra.

J.Rosenquist



_ Como é o teu nome?
_ Celimena
_ De quê?
_ Lafaiete
_ Quantos anos?
Não entendia por que razão aquela secretária insistia em lhe fazer tantas perguntas, se sabe que terá que respondê-las novamente quando estiver junto ao médico. Com certeza deve ser para ficar olhando para a sua cara grande, que goteja lágrimas sem parar. Cara de problema. Cara de louca.
_ Pode aguardar ali, no sofá amarelo.
Vira-se e enxerga uma porção de caras ferradas olhando para ela. Faz cara de quem não viu. É chamada para entrar.
_ Boa tarde.
_ Oi
Lá está ele, aquele médico quase albino. Com cara de quem não é daqui e que olha por cima dos óculos. Senta-se à sua mesa, e pede para que ela se sente à sua frente.
_ Qual é o teu nome?
_ Celimena.
_ Quantos anos?
_ Vinte e cinco
_ Você tem dinheiro para pagar as outras consultas?
_ Hã?
_ É que não adiantará nada eu te atender, se depois desta consulta você não tiver dinheiro para continuar a terapia.
_ Ah! Tudo bem...
_ Então vamos nos sentar naquelas poltronas.
Confortáveis. Uma ao lado da outra. Para olhar o interlocutor, é preciso virar a cabeça. Celimena se vira, e chora.
_ Eu tive uma crise ontem
_ Hum...
_ Não durmo direito. Emagreci sete quilos. Os meus seios não são mais os mesmos. Não consigo levantar da cama quando acordo.
_ Então você definhou! Os seus peitos murcharam!
_ Não é bem isso... Só emagreci muito.
_ E não levanta porque não quer! Deixe a janela aberta durante a noite! De manhã o sol baterá na tua cara. Não há quem não levante assim!
_ Mas eu tenho muito sono também. É muito forte. Um desânimo incontrolável...
_ Você quer que o sono acabe antes de você levantar? Eu também queria! Mas eu levanto, eu levanto! E a tua família?
_ Eles estão tentando me ajudar. Gostam de mim. Coitados...
_ Coitados por quê? Você que é uma coitada!
_ Olha, ô Celina, eu vou te receitar um livro de Baudelaire!
_ Tá. Escreve o nome para mim em um papel.
_ Está aqui ó!
Celimena vai embora, mas volta.
_ Você trocou o meu nome ontem.
_ É? E então, vai continuar o tratamento, ou não?



domingo, novembro 22

rouge

                                     Otto Dix, ALE, 1928

os seus sapatos são vermelhos
as suas idéias são vermelhas
ele pensa em vermelho
fala em vermelho
atira-se no vermelho
se delicia com o vermelho
o seu cachecol e o seu sexo são vermelhos
mas ninguém sabe disso. 













                                                                                                                                                                                                   

sábado, novembro 21

a gorda


Tom Wesselmann, USA, 1960

Os seus passos pesados sobre a extensa escada denunciam a sua chegada. Cada passo de uma vez, lento, gordo, cansado. Respiração ofegante, que só faz aumentar o excesso de suor no seu rosto roliço. Banhas quentes, não desejadas, e tão bem mantidas naquele corpo mal cuidado. O seu sexo, quase indefinível, visível somente a quem muito olha. Os seus cabelos, finos, longos e sujos em cima dos seus ombros carnudos, e presos displicentemente só para não incomodarem. O sorriso é branco, e somente se perde no marshmallow sufocante que preenche todo o espaço de sua boca, escapando pelos lados, e lambido pela língua faminta. A melhor poltrona é a sua. É onde cabe a sua bunda gorducha, enquanto a TV fica ligada. Senta-se. De lá não levanta. A comida vem até ela. O seu namorado é quem a leva, tropeçando nos sapatos também gordos, espalhados pela sala. Rapaz franzino de olhos tortos. Três vezes a menos o tamanho dela. Sempre gentil, e sempre folgado. Não sai de perto. Não é nada. Não faz nada. Eles dormem juntos. A cama é de solteiro. Ela ronca. Ela urina nas calças. A amônia exala por entre as suas coxas e não abandona os narizes de quem está perto, nem o dele. Mas ela não sente. E não percebe que a sua privada branca é pequena, marcada por cada uso, por cada ida sua ao banheiro. Nada disso faz diferença. Sexy, é como ela pensa ser. Nem ao menos os seus cochilos, tirados enquanto o franzino a lambe, mudam as suas idéias. Mulher gorda. Sem dinheiro. Com carro, e cara de pau. Não paga as suas contas. Não recolhe as suas roupas sujas. Não limpa o fogão e não leva o lixo para fora, mas descobre que gosta de apanhar. Apanhar muito e apanhar pouco. Larga o franzino, que fica sem ter para onde ir, mas não é problema dela. Emagrece. Faz outros amigos. Eles também gostam de apanhar. Todos os seus novos amigos gostam de apanhar. Os tapas doem e a mantêm acordada. Viaja para outros lugares. Encontra mais amigos que gostam de bater e de apanhar por prazer. Sente-se melhor, mas não tem emprego. Deixa de ser estagiária, e de sair de casa sem pentear os cabelos. Voltou a morar com os pais. Mãe sem conserto. Ainda acha que a filha é uma gorda.

domingo, novembro 8

a casa não é sua


                                                                                                                                   Charles Sheeler, USA,1930


                                                                                  


O porteiro cujo nome nem se desconfia toca três vezes para o quarto bege de carpete e cortinas beges. Sugere que ela saia na primeira. Na segunda, se repete. Na terceira, impõe a sua autoridade de guardião de entradas sem saídas. O dono do desajeito e a fumaça desejam saltar pela janela. Ela, sentada sobre a colcha amarela, de pernas cruzadas aguarda a resposta curta. As cortinas continuam fechadas. A janela também. Que seja feita a vontade do porteiro.


 
                                                        
                                                                                                    

        

                                                                                                                
 
 
 
 

de ontem

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